Je reste le même – Charlie Hebdo e a seletividade de nobres sentimentos
Todo
atentado à vida humana é inadmissível. Qualquer um que munido de suas crenças,
razões ou princípios venha a cometer atos de violência contra o seu semelhante
deve ser exemplarmente punido. A chacina de doze pessoas ocorrida na sede do
semanário parisiense Charlie Habdo reforça de forma cruel o quanto a
intolerância e a incapacidade de lidar com o diferente podem ser nefastos para a
vida em sociedade. Trata-se de um crime perpetrado. Portanto, por criminosos
que devem ser presos, julgados e sentenciados. Indubitavelmente, medidas devem
ser tomadas para que fatos análogos não voltem a acontecer.
Pois
bem, tudo o que até agora foi dito, é nada além do que lugar-comum. Apenas uma
introdução para deixar claro o meu ponto de vista em face do ocorrido e, assim,
evitar julgamentos equivocados em relação à minha postura ante ao atentado.
Apesar disso, escrevo por outro motivo: je suis Charlie.
A
frase acima em poucas horas tomou os meios de comunicação e converteu-se em um
movimento físico reproduzido em muitas das grandes urbes ao redor do mundo.
Todos enlutados pela abjeta morte dos paladinos da liberdade de expressão. Há
poucos minutos, no Jornal Nacional, Ediney Silvestre resumia o intenso nível de
emoção e engajamento por qual o mundo fora subitamente tomado. O Brasil fez sua
parte: demonstrações de apoio na zona sul do Rio de Janeiro e no vão livre do
MASP, habituais pontos de encontro dos que clamam pelo fim da violência (em
outras ocasiões vestiram branco ou tinham por marca registrada as mãos unidas
em alusão à uma pomba da paz) e também por outras demandas pelas quais se
identificam. Clima de consternação e dor seletivas que corroboram a ideia de
que semelhante é somente aquele que partilha dos mesmos ideais, anseios, e
sobretudo, visibilidade e classe econômica.
Pois
bem, sou convicto em afirmar: em pouco ou nada vai mudar a minha vida a morte
de muitas das pessoas as quais conheço. Muito provavelmente não velarei quase
que a totalidade de meus amigos virtuais e, mesmo que me entristeça por saber
do ocorrido, o fato de alguém vir a óbito, salvo minha família e pouquíssimos amigos, sequer alterará
a minha rotina. Caso assim não fosse, viveria eu (e humanidade por
consequência) em permanente luto. Pois, o que não nos falta, são tragédias
decorrentes da nossa natureza finita.
O
que enxergo através do movimento gerado a partir do triste episódio da Charlie
Hebdo é a cristalização (semelhante ao que discorreu um outro francês –
Stendhal) do narcisismo e da necessidade de aprovação junto aqueles pelos quais
são estes a todo momento observados. É um movimento que exala de suas glândulas
um aroma bastante atraente aos que o compõe: a bandeira da não-islamização do
ocidente e a defesa da liberdade de expressão (desde que essa autonomia seja
exercida pelos que mereçam detê-la). Ou então, ao menos, uma ótima maneira de
se parecer politizado ao replicar uma hashtag
com os já famosos dizeres somada à já tradicional selfie agora munida de igual cartaz. É garantia de muitas curtidas
e, quem sabe, um ou outro compartilhamento.
Em
2013, no documentário Dirty Wars, o
jornalista Jeremy Scahill narra uma ação de um grupo de operações especiais
estadunidense no Afeganistão, chamado JSOC. Segundo consta através do que foi
apurado, nesse tipo de ação muito corriqueira para este esquadrão (conhecidos
como talibãs norte-americanos), eles invadiram durante à noite uma residência na
qual ocorria uma festa, abriram fogo contra todos que estavam desarmados e
mataram inclusive crianças e uma mulher grávida. No mesmo filme, vemos o caso
do filho adolescente de um radical islâmico já morto na chamada guerra ao
terror. Ele é assassinado (na verdade pulverizado) por um DRONE enquanto
caminhava com amigos em uma pacata rua de uma cidadela da Jordânia. Alegaram
que ele poderia vir a tornar-se um terrorista, por isso a medida radical.
Seguem-se ainda a estes, outros fatos de igual ou maior violência. Tais fatos
servem de ilustração. Porque é aí que entra a seletividade de tão nobres
sentimentos externados.
Não
vi em nenhum telejornal ou qualquer outro veículo da grande imprensa pessoas
segurando cartazes em referência à grávida morta naquela operação. Ninguém quis saber quem eram os mais de cem
mortos do semelhante atentado ocorrido mês passado na Nigéria. Não vejo as
mesmas pessoas empenhadas para que ninguém mais precise morrer de fome nos
bolsões de miséria que se multiplicam ao redor do globo. Não vejo manifestações
que peçam o fim das mortes de escravos indianos e nepaleses nas suntuosas obras
de Dubai. Não vi ninguém na zona sul carioca ou na Avenida Paulista revoltar-se
contra as centenas de mortos em conflitos de questão fundiária, pelos milhares
que são mortos de forma violenta em nossas periferias.
Sinto
pelos mortos. No entanto, je reste le même*.
*Eu
permaneço o mesmo
Novamente, perfeito, Fernandão!
ResponderExcluirGostei do "seletividade de nobres sentimentos".
Concordo mesmo! Nao apoio violencia, mortes nao justificam nada...mas essa midia faz da tragedia um acontecimento catatrofico quando ocorre no "primeiro mundo", e os robozinhos correm pelo mundo a se "solidarizar"..... palhaçada!
falando em "palhaço"....parafraseando o Coringa (no filme Batman - O Cavaleiro das Trevas): "se amanhã eu falar à imprensa que um caminhão cheio de soldados explodirá (na Siria), ninguém se aterroriza. Porque é tudo parte do plano. Se eu disser, porém, que um prefeitozinho (ou 10 jornalistas em PARIS) vão morrer… Todo mundo perde a razão!"
Caro Pierre, muito obrigado. Fico feliz que tenhamos afinidades em muitos dos nossos pontos de vista. Caso possa, compartilhe ou indique os meus textos. Jornalistas publicam seu trabalho para atingir o público de alguma forma. Desde já agradeço. Um forte abraço.
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